Autonomia médica não significa, de maneira nenhuma, autorização para o médico receitar qualquer medicamento, sem que haja evidências científicas que corroborem sua indicação.
Enquanto os médicos receitavam o que lhes dava na cabeça, a medicina fazia pouca diferença na vida dos doentes.
Durante séculos, médicos prescreveram sangrias, aplicações de sanguessugas, lavagens intestinais, vomitórios e poções preparadas com mistura de ervas e cascas de árvores, em nome da autonomia no exercício da profissão.
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A medicina foi praticada dessa maneira desde os tempos das cavernas, quando a expectativa média de vida era de vinte e poucos anos. Milhares de anos mais tarde, no século 18, essa expectativa mal passava dos 30 anos, pouco mais do que no Império Romano. No início do século 20, atingia 40 anos, mas apenas na Europa desenvolvida.
A prática médica baseada em evidências científicas foi decisiva para elevar a expectativa para mais de 70 anos, na maior parte dos países.
Por incrível que pareça, a autonomia irrestrita dos médicos para receitar o que bem entenderem foi ressuscitada pelo mau-caratismo de alguns políticos para justificar o emprego de remédios inúteis no tratamento da covid-19, em pleno século 21.
São desprezíveis esses homens com intenções inconfessáveis, que pregam a liberdade dos médicos para receitar até o que não serve para nada, até o que pode fazer mal, mas que, ao ficar doentes, correm para os melhores hospitais de São Paulo e chamam os médicos mais afamados, para serem tratados em obediência às melhores evidências científicas.
Semana passada uma enfermeira teve um quadro de hepatite fulminante. Era uma moça de 42 anos, saudável, que perdeu a vida em poucos dias, mesmo depois de receber um transplante de fígado.
Ao médico deve ser assegurada a liberdade de apresentar ao paciente as opções de tratamento com eficácia demonstrada em estudos clínicos, para ajudá-lo a escolher a melhor opção.
Tomava, por conta própria, cápsulas contidas num frasco que trazia no rótulo “50 Ervas Chá Emagrecedor”, indicado para diabetes, colesterol, para regularizar o intestino, combater a ansiedade e a celulite, além de emagrecer sem necessidade de dieta, segundo o fabricante apregoava.
A internet, terra de ninguém, o rádio e a TV estão infestados de anúncios de produtos como esse, que se beneficiam de uma legislação ridícula, na qual são enquadrados como suplementos alimentares, portanto comercializados sem passar pela fase de estudos clínicos para demonstração de eficácia nem de avaliação pela Anvisa.
O argumento mais convincente para os incautos de boa fé que os compram, é de que são “produtos naturais”, portanto, se não fizerem bem, mal não farão.
O professor Raymundo Paraná que coordena o grupo que recebe os casos de hepatite fulminante, no Hospital da Universidade Federal da Bahia, identificou sete ervas hepatotóxicas entre as 50 da panaceia em questão, que levou a enfermeira à morte.
Tempos atrás fui consultado por uma paciente com múltiplas metástases hepáticas, que tomava essas cápsulas de 50 ervas, prescritas por um médico que se dizia “especialista em medicina natural”.
Você perguntará, leitora incrédula, como é possível um cidadão ter passado seis anos numa faculdade de medicina, sem ter adquirido um mínimo de formação científica, a ponto de receitar ervas com componentes tóxicos para pessoas doentes ou saudáveis?
É possível, cara amiga. Os médicos que se dedicam a essas áreas pertencem a dois grupos: o primeiro é o daqueles que saíram da universidade sem noções básicas do pensamento científico; o segundo é o de espertalhões que farejam, nesse campo, um mercado mundial avaliado em cerca de U$ 20 bilhões anuais.
Nas faculdades particulares que proliferaram nos últimos anos para atender interesses políticos e comerciais – mas não apenas nelas -, milhares de profissionais foram graduados sem ter ouvido falar em estudos fase 3, significância estatística e nas evidências científicas necessárias para indicar ou contraindicar qualquer tratamento.
Por essa razão, muitos médicos defenderam a famigerada “pílula do câncer”, os poderes curativos de João de Deus, e milhares deles prescrevem ainda hoje hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina, para pacientes com covid-19, sob o olhar acovardado dos Conselhos de Medicina. A ignorância dessa gente foi capturada pelos espertalhões que passaram a vociferar pela sagrada autonomia médica.
Ao médico deve ser assegurada a liberdade de apresentar ao paciente as opções de tratamento com eficácia demonstrada em estudos clínicos, para ajudá-lo a escolher a melhor opção. Liberdade para receitar remédios inúteis, que apresentam efeitos colaterais ninguém pode ter, nem o companheiro de mesa no botequim.
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