Quando há uma amputação, o membro continua intacto no mapa cerebral, por isso muitos pacientes sentem dor fantasma.
A dor fantasma é uma dor muito real (não tem nada de imaginação) que acomete cerca de 90% dos indivíduos que passam pela amputação de alguma parte do corpo. Queimação, formigamento, pontadas e até cócegas são alguns dos desconfortos que os pacientes relatam sentir.
Entrevistamos o dr. André Sugawara, médico fisiatra da Rede Lucy Montoro, considerado um dos maiores especialistas do assunto no Brasil.
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A dor fantasma
Portal DV — Como alguém pode sentir dor em um membro que simplesmente não existe mais?
André Sugawara — Onde começa uma perna? Algumas pessoas vão apontar a coxa, a pelve, a bacia, mas não. Na verdade, a perna começa e termina no cérebro. Quando amputamos uma perna ou um braço, teremos uma parte que irá faltar, a parte física, mas teremos um restante que continuará intacto. Então você perde a parte que se mexe, mas a central de comando, digamos assim, continua existindo.
Portal DV — Existe algum período em que o cérebro vai se dar conta de que a parte física do membro não está mais ali?
André Sugawara — Pense que você perdeu a perna física, mas ela continua lá no seu esquema cerebral. Após o trauma, o cérebro percebe imediatamente que há algo errado; por isso o paciente pode começar a sentir dor ou qualquer outro desconforto. Imagine um indivíduo que tem um câncer que está prejudicando sua perna, e ele vai precisar amputá-la. Então, o processo de perda começa antes da retirada efetiva da perna. O indivíduo vai se “preparando”, digamos assim. Não seria uma perda, mas uma solução.
Nesse caso, ele vai sentir bem menos dor que em situações em que não há essa preparação. É muito diferente de quando ocorre algo traumático, como um acidente de moto. Nesse último caso, como é algo abrupto, existe uma chance menor de o cérebro reconhecer a perda. Portanto, esse processo de “se dar conta” vai depender de como o membro foi perdido.
Portal DV — Li que esse fenômeno ainda é bem recente como objeto de estudo da Medicina. É verdade que vocês aprenderam sobre esse conceito a partir da I e II Guerras Mundiais?
André Sugawara — Exatamente. Mas também começou com um escritor e neurologista chamado Silas Weir Mitchell, que durante a Guerra Civil Americana observava que “milhares de membros fantasmas estavam perseguindo e atormentando muitos bons soldados”. A amputação, em si, existe desde que o homem é homem, mas foi ele quem deu essa definição de dor fantasma.
Portal DV — E vocês conseguem entender a causa dessas dores?
André Sugawara — Sempre se tentou achar a causa a partir da parte que foi embora, ou próximo da parte que foi embora. Mas desde mais ou menos 2014 nós já temos evidência de que esse processo não ocorre ali, mas no cérebro.
O paciente consegue, inclusive, utilizar outras representações do corpo para ativar a área daquela perna que foi amputada.
Como é a dor fantasma
Portal DV — A dor surge logo após a operação?
André Sugawara — Logo depois da cirurgia de amputação eles já sentem a dor. Ela consiste em qualquer sensação desagradável que a pessoa sinta na parte faltante. Pode ser coceira, choque, formigamento, queimação, frio, sensação de inchaço, de que a perna que foi amputada está se mexendo sozinha, câimbra. É muito difícil os pacientes encontrarem palavras para relatarem o que estão sentindo.
Portal DV — E qual a intensidade das dores?
André Sugawara — Ela não é uma coisa só, é um conjunto de dores. Por exemplo, um paciente relata uma coceira que, de 0 a 10, incomoda em um nível 5. Mas ele também sente choque, que não aparece todos os dias, mas quando aparece, é mais que 10, é simplesmente insuportável. Então, podemos ver que dentro da dor fantasma é possível ter infinitas sensações com diferentes graus de intensidade, e que aparecem de diversas maneiras. Pode ser contínua, surgir uma vez por mês, quando a pessoa dá risada, quando está dormindo. Há vários gatilhos.
Tudo isso que eu citei é bem diferente da sensação fantasma. A sensação nada mais é do que sentir a presença da parte que foi amputada. A sensação de que você tem um membro e que consegue até controlá-lo, mas não é uma sensação desagradável. O paciente não sente os desconfortos, somente a sensação de que ainda tem algo.
Portal DV — Por isso é importante esclarecer que a dor não tem nada de psicológica.
André Sugawara — Nada. Ela é bem anatômica, bem física. O processo se inicia e termina no cérebro. Ninguém vai comemorar e celebrar a perda de um membro. O indivíduo vai sofrer, entrar em luto e até deprimir. Há questões emocionais, sim, mas elas não geram a dor fantasma. É o contrário: é a dor fantasma que amplifica e perpetua as questões emocionais.
Portal DV — Sabendo disso, antes de uma cirurgia vocês costumam preparar o paciente para essa perda e uma possível dor fantasma?
André Sugawara — Sempre. Há um protocolo que seguimos de conversar, tirar toda e qualquer dúvida sobre o que vai acontecer, principalmente no pós-operatório.
Tratamento da dor fantasma
Portal DV — Quais recomendações o paciente precisa seguir após uma amputação?
André Sugawara — A primeira coisa é o posicionamento da cama. O corpo não deve estar desalinhado, porque os músculos próximos ao membro amputado, principalmente na articulação do quadril e do joelho, tendem a se encurtar.
É importante sempre lembrar que a perna física foi embora, mas a perna que está no cérebro continua lá. A maioria dos acidentes no pós-operatório ocorre porque o paciente ainda sente que tem a perna, levanta, vai tentar andar e cai. Então, conversamos bastante para conduzir o processo de adaptação fazendo exercícios com o apoio de barras paralelas para aprender a andar com a prótese e ter equilíbrio.
Depois que os pontos são tirados, começa o processo de enfaixamento elástico, que é feito desde a época dos egípcios e ajuda a reduzir as dores e o desconforto.
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Portal DV — Para os pacientes que relatam dor, o que pode ser feito para amenizá-la?
André Sugawara — A literatura mostra que não adianta o uso de medicamentos para eliminar a dor, infelizmente. De qualquer maneira, utilizamos alguns analgésicos e outros medicamentos para aliviar o desconforto. Mas reforçamos as medidas alternativas, como enfaixar o membro residual, fazer estimulação eletromagnética, usar algo para aquecer a região, massagens, acupuntura, usar prótese, fazer a terapia do espelho…
Portal DV — O que é terapia do espelho?
André Sugawara — É o que a gente mais utiliza na prática clínica, e realmente funciona. Nela, o paciente que teve uma perna ou um braço amputado se posiciona em frente a espelhos, tendo a ilusão de que ele ainda possui os dois membros saudáveis. Assim, é pedido que ele tente mover as duas pernas ou os dois braços ao mesmo tempo e que imagine que a outra esteja se mexendo. A estratégia engana o cérebro e a sensação incômoda diminui em algumas pessoas. A dificuldade é o paciente aceitar fazer isso, porque muitas vezes ele não bota fé. Mas basta ele fazer uma vez e sentir o resultado para agregar a terapia ao dia a dia. Pode fazer em casa, em qualquer lugar que tenha um espelho.
Portal DV — O paciente pode deixar de sentir o desconforto ou a dor?
André Sugawara — Depende. Há casos de pacientes que tem dor há mais de 40 anos. A intensidade e frequência das dores diminuem com o passar do tempo, mas, infelizmente, essa dor acompanha o paciente pelo resto da vida.
A dificuldade para relatar o desconforto
Portal DV — Pacientes que sofrem amputação costumam falar que sentem dor fantasma?
André Sugawara — Olha, eu costumo dizer que essa dor é um sofrimento invisível, porque os pacientes têm medo de falar que estão “sentindo” a perna e os outros, inclusive médicos, acharem que ele está ficando louco.
Como assim? Sentir dor em algo que não existe? A cabeça do paciente entra em parafuso. Ele sofre sozinho e não conta. Só conta quando encontra um local ou um ouvinte que esteja disposto a ouvir sem críticas, aí ele se abre. Ou, no máximo, o paciente vai dizer que está doendo a parte do membro que restou, chamado membro residual (antes falava-se “coto”, mas esse termo é pejorativo, portanto não é mais usado), e não a parte que falta.
Portal DV — Fale um pouco mais sobre isso.
André Sugawara — As pessoas realmente têm muito receio de falar. Dizem: “Ah, eu não vou falar sobre essa dor, porque vão achar que é coisa da minha cabeça, que faz parte do processo”. Então elas sofrem anos sem dizer nada.
Quando resolvem dizer, normalmente o primeiro médico que ouve não dá tanta importância, diz que é normal e que vai passar. Então os pacientes se retraem ainda mais. Por isso, precisamos melhorar as duas pontas, o médico e o paciente, que precisa se sentir seguro para conseguir se abrir. Ambos precisam saber que é uma queixa pertinente e que sim, é possível tratar. É possível atenuar a dor e dá para levar uma vida normal.
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