A pandemia de covid-19 nos traz uma dúvida: será que já é hora de reabrirmos as escolas? Como deve ser a volta às aulas na pandemia?
A pandemia do novo coronavírus tem nos colocado questões complexas, difíceis de resolver, apesar das tentativas maniqueístas em voga nas redes sociais. Em um país de dimensões continentais e extrema desigualdade social, não há resposta que não traga implicações diversas.
Nas últimas semanas, o debate sobre a volta às aulas presenciais tem se intensificado. Aqueles que defendem que as escolas sejam reabertas têm bons argumentos, a começar pelo fato de que é sabido que crianças pequenas tendem a desenvolver um quadro mais leve de covid-19, isso quando não são assintomáticas. Um estudo sul-coreano mostrou, também, que crianças entre 0 e 10 anos transmitem menos o vírus.
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Não parece fazer sentido abrirmos serviços não essenciais como bares e restaurantes, onde sabemos que o risco de transmissão é relativamente alto, e mantermos crianças pequenas, menos vulneráveis à doença, dentro de casa.
Além disso, as escolas têm papel fundamental na organização das famílias. Elas não servem apenas de espaço de aprendizado: é lá que crianças fazem refeições — para muitas, a única do dia — e ficam em segurança enquanto os pais trabalham. A escola também ajuda a coibir a violência contra a criança, já que a maioria dos casos de abuso sexual e maus tratos ocorre em casa.
O ensino remoto, adotado por boa parte das escolas para substituir as aulas presenciais, também não é acessível a todos os alunos. Levantamento feito pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic), em 2019, mostra que aproximadamente 30% dos lares no Brasil não têm acesso à internet. Muitas crianças tampouco dispõem de ambiente adequado de estudo em casa.
Vários pediatras e psicólogos têm alertado para o fato de que o número de crianças com quadros depressivos e ansiosos está aumentando. Além disso, elas estão mais sedentárias e passando mais tempo diante das telas, cujo uso excessivo e indiscriminado pode trazer uma série de problemas à saúde física e mental.
Segundo a Unesco, o fechamento das escolas, ocorrido em quase todos os países do mundo durante a pandemia, interrompeu o aprendizado, aumentou as taxas de evasão escolar e de violência doméstica, piorou a nutrição das crianças e as deixou mais isoladas socialmente.
Dificuldades de reabrir as escolas
Apesar de reconhecerem a importância das aulas presenciais e as limitações do ensino a distância, especialistas em saúde e educação estão preocupados com a possibilidade da volta às aulas enquanto o país registra mais de mil mortes e mais de 40 mil novos casos de covid-19 diários.
“Temos dois critérios essenciais para a reabertura das escolas: baixa taxa de transmissão na comunidade e capacidade de testagem com rastreamento de contatos. Não conheço nenhum local no Brasil que preencha esses critérios neste momento”, afirma a dra. Denise Garrett, médica epidemiologista e vice-presidente do Sabin Vaccine Institute, nos Estados Unidos.
Abrir as escolas no meio de uma transmissão tão alta sem tomar as devidas precauções é, no mínimo, irresponsável. E se a maioria das escolas públicas não tem recursos para fazer o que deve em um cenário básico, imagine neste momento de pandemia. Lembrando que as pessoas que vivem nas comunidades mais pobres serão as que mais vão sofrer os danos da reabertura precoce
Embora crianças tenham risco menor de manifestar um quadro mais severo de covid-19, há uma pequena porcentagem que desenvolve sintomas graves e precisa de internação hospitalar.
Além disso, o fechamento das escolas parece reduzir o número de novas infecções na comunidade, visto que as aulas presenciais aumentam, também, a circulação e, consequentemente, as aglomerações de pessoas adultas, pois pais e responsáveis e funcionários precisam se locomover mais, muitos por meio do transporte público.
Levantamento realizado em 2013 pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) revelou que 60% dos professores trabalham em mais de uma escola, portanto o retorno das atividades presenciais nas escolas certamente aumentará os deslocamentos e a consequente exposição desses profissionais ao vírus.
Um estudo publicado no JAMA mostrou associação entre a diminuição do número de casos novos nos Estados Unidos e o fechamento das escolas. Os pesquisadores afirmam que é possível que outros fatores tenham influenciado na queda, mas afirmam que estados que fecharam as escolas antes conseguiram reduzir suas taxas de casos novos e óbitos.
“O estudo mostrou que manter as escolas fechadas também ajuda a aumentar a taxa de isolamento social dos adultos, que permanecem mais tempo em casa por causa das crianças”, completa o pneumologista Fred Fernandes, presidente da Sociedade Paulista de Pneumologia e Tisiologia.
Para o professor da Faculdade de Educação da USP Daniel Cara, é preciso considerar as diferentes realidades de um país com as dimensões territoriais do Brasil. Não há escolas e salas de aula suficientes para garantir o distanciamento social dos alunos na maioria das escolas públicas e muitos profissionais de educação do país sofrem de comorbidades que os tornam mais vulneráveis a desenvolver um quadro grave de covid-19, como diabetes.
“Nós não temos como garantir que todas as escolas tenham condições de seguir os protocolos de segurança que garantam a volta. Por conta da desconsideração da posição de infectologistas e da ciência, o retorno é perigoso”, afirma Cara.
Alexandre Schneider, ex-secretário municipal de Educação de São Paulo, pesquisador da FGV e presidente do Instituto Singularidades, diz que os pais devem exigir a apresentação dos protocolos e a comprovação de que a escola está pronta para garantir a segurança de todos. “Neste momento, ainda não temos, na gestão pública, algo além da definição de protocolos pela Saúde. Seria necessário que a gestão pública mostrasse que as escolas estão seguras”, conclui.
“[Não retomarmos as aulas presenciais] não significa que não devemos ter uma política educacional. Essa política deve visar a redução de danos e precisa passar pela distribuição de unidades computacionais e pelo fornecimento de internet com banda larga. Deve ser um projeto pedagógico protagonizado pelos professores. Não adianta ouvir especialistas que não conhecem a escola pública e a ciência pedagógica”, explica Cara.
No dia 5/8/20, Mike Ryan, diretor de emergências da Organização Mundial da Saúde (OMS), também alertou para o risco de abertura precoce das escolas. “Nós todos queremos nossas crianças de volta às escolas, mas abrir as instituições em meio à transmissão comunitária provavelmente vai piorar o problema”, afirmou.
“Abrir as escolas no meio de uma transmissão tão alta sem tomar as devidas precauções é, no mínimo, irresponsável. E se a maioria das escolas públicas não tem recursos para fazer o que deve em um cenário básico, imagine neste momento de pandemia. Lembrando que as pessoas que vivem nas comunidades mais pobres serão as que mais vão sofrer os danos da reabertura precoce”, aponta a dra. Garrett.
Como dito no início desta coluna, nenhum caminho será fácil. Uma série de desacertos nos levou a enfrentar uma epidemia descontrolada, e a ideia de que a taxa de casos novos diários cairá em breve parece cada vez mais distante. Assim, é preciso reduzir os danos com o máximo possível de segurança.
Até o momento, não sabemos se é possível reabrir as escolas sem, com isso, gerar um agravamento da pandemia. Não temos sequer como nos basear na experiência de outros locais, pois nenhum país do mundo fez essa opção enquanto suas taxas de casos novos e óbitos diários eram tão elevadas.
Vale o risco?
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