A mulher corpulenta parou na porta do botequim, olhou para o fundo e caminhou a passos duros na direção do casal na mesinha com a cerveja.
– Seu cachorro, ordinário. Tá fazendo o quê com essa vagabunda?
O cachorro ordinário era Dorival, seu ex-marido, um mecânico de abdômen avantajado, de bermudão e havaiana, sentado bem perto de Soninha, morena oxigenada, vinte anos mais nova do que ele e a mulher de seios fartos que a agarrou pelos cabelos e derrubou a mesa, a garrafa e o pratinho de salame com os palitos e as rodelas de limão.
A desigualdade de estatura desequilibrava a refrega em favor da invasora que chacoalhava a cabeça da inimiga, com a intenção aparente de arrancá-la do pescoço. Aos pedidos de calma, muita calma, Dorival se interpôs entre as contendoras, intervenção que teria obtido êxito não fosse a joelhada recebida nas partes baixas.
Com o corpo arqueado pelo golpe, pediu ajuda aos circunstantes, todos eles vizinhos e amigos da Vila Nova Cachoeirinha, nenhum dos quais se dignou a socorrê-lo. Valdemar, conclamado pessoalmente para interferir em nome da amizade desde os tempos de meninos, limitou-se a murmurar: “Eu, hein!”
Quando resolveu parar, a agressora largou a cabeça chacoalhada, meteu as unhas no rosto da moça e na careca do ex-marido que teimava em contê-la, endireitou o corpo, esticou a blusa e alisou o cabelo com as mãos, virou dois tapas na cara do ordinário sem-vergonha e abriu caminho decidida entre os curiosos aglomerados no balcão.
Dorival e a ex-esposa, conhecida por todos como Terezona, tinham se separado depois de vinte e cinco anos de vida em comum e dois filhos, um dos quais casado. Separação civilizada, a ponto de morarem a uma quadra de distância: ela e o filho solteiro no conforto do sobrado adquirido pelo casal, ele num quarto e sala alugado de uma tia.
O divórcio informal fora acertado em comum acordo. Segundo ela, para se livrar da falta de consideração do marido que dava mais importância aos amigos do bar do que à esposa esperando horas, feito tonta, com o jantar à mesa. De acordo com ele, a causa dos desentendimentos constantes era o gênio encrenqueiro da mulher:
“Conta para mim, que homem aguenta uma mulher buzinando na orelha dele, o tempo inteiro”.
Depois de meses discutindo o formato da separação, acertaram uma cláusula pétrea: teriam liberdade para levar a nova vida como lhes aprouvesse, desde que não expusessem o outro ao falatório da vizinhança.
O entrevero acontecera num bar da avenida mais movimentada do bairro, quando o casal já vivia em casas separadas há quase um ano, fase em que Dorival caíra encantado por Soninha, passista da Camisa Verde e Branco, a ponto de desfilar com ela pelas redondezas sem dar ouvidos ao amigo de infância que mais tarde lhe negaria auxílio na briga do botequim, o experiente Valdemar:
“Meu, você está aí todo moderninho, tirando uma de divorciado, mas o dia que a Terezona descobrir a desfeita, com uma mulher vinte anos mais nova do que ela, la maison va tomber”.
Os meses se passaram, e a paixão por Soninha esfriou na mesma medida em que o relacionamento com a ex-mulher se tornava mais próximo.
Na saída da maternidade, no dia em que nasceu a primeira neta, o casal se reconciliou. Antes de voltarem a residir sob o mesmo teto, no entanto, Dorival achou por bem ser honesto com a namorada que não esperava perdê-lo “de uma hora para outra, sem ter feito nada de errado”, conforme se queixou, aos prantos.
Domingos mais tarde, Terezona completou 52 anos. Dorival reuniu os filhos, a nora, dois casais de cunhados, três sobrinhas e a sogra na pizzaria mais concorrida da Nova Cachoeirinha.
Na hora em que o garçom servia os pratos, do nada, apareceu Soninha com ar de poucos amigos, deu com a bolsa em duas garrafas enormes que esparramaram refrigerante pela mesa, jogou quase uma pizza inteira no rosto de Terezona, xingou Dorival de cachorro ordinário, deu-lhe dois tapas estalados na cara, virou as costas e saiu enfezada, sem que qualquer dos presentes ousasse esboçar reação.
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